A Linha dos
Malandros da Umbanda traz para dentro do ambiente Sagrado os excluídos da
sociedade. Espíritos que em alguma encarnação, por conta do preconceito racial,
foram considerados párias e marginalizados pela sociedade, mas que lidaram com
essa adversidade sem perder sua Fé, sua identidade e seu bom humor, certamente
que já apresentavam um bom nível pessoal de evolução. E após desencarnarem
continuaram suas evoluções, até alcançarem um Grau perante a Espiritualidade, o
qual lhes permitiu voltar à Terra na condição de Guias Espirituais, para nos
reconduzir ao Divino.
Ao
mesmo tempo, a Linha dos Malandros simboliza a aproximação dos excluídos com o
Divino e ainda, para todas as pessoas, a possibilidade de uma reflexão sobre o
preconceito e as exclusões sociais.
Mas,
afinal, alguns se perguntam o quê um “malandro” teria para nos ensinar, qual
seria a sua contribuição dentro da religião? Primeiro, cabe lembrar que não
estamos falando do “malandro” no sentido vulgar da palavra.
Os
Espíritos que se apresentam na Umbanda dentro da Linha que corresponde ao Grau
Malandro (com “M” maiúsculo!) vêm nos ensinar a flexibilidade, a capacidade de
adaptação diante dos obstáculos, o “jogo de cintura” e o bom humor, que se
obtêm através do sentimento de Fé na Vida e em si mesmo e do equilíbrio das
emoções, dos pensamentos e dos sentimentos. De alguma forma, em algum momento
das suas existências, eles vivenciaram tudo isso e podem nos auxiliar.
Os
Malandros nos ensinam: ●que a vida é feita de experiências e toda experiência
visa a nos ensinar algo de positivo; ●que não há obstáculos insuperáveis, pois
isso nos condenaria à destruição, o que é inconcebível porque não há “morte” em
nenhum ponto do Universo e sim, transformações que promovem renovação e
evolução constantes; ●que é preciso confiar nas Leis da Vida e manter a alegria
e o bom humor, para estar em sintonia com faixas vibratórias positivas e atrair
a cura espiritual, emocional, mental e física, pois todo filho de Deus é um
co-criador.
Sua
linguagem é altamente simbólica. Muitas vezes, eles falam conosco e comparam a
vida a um jogo de cartas ou de dados:
●Nesse
“jogo”, uma “jogada” ruim seria um imprevisto, uma adversidade. O que não
significa a perda da partida (motivo para desespero, descrença e desistência),
pois a próxima “jogada” (a nova oportunidade, o próximo passo) poderá ser
melhor, só depende de nós;
●Nesse
“jogo”, é preciso estar atento a cada passo, observando o “adversário” (o
desafio externo, bem como os próprios pensamentos, convicções, emoções e
sentimentos), para se enfrentá-lo em melhores condições e se alcançar “a
vitória”;
●“A
vitória” pode ser a superação do obstáculo em si. Mas a grande “vitória” é o
entendimento das causas da dificuldade e a aceitação da nossa responsabilidade
por essa realidade que de algum modo criamos. O erro ensina e nos dá
oportunidade de recomeçar e acertar;
●No
caso de uma derrota, saber esperar outra oportunidade e tentar de novo, sem
nunca desistir. Podemos “virar o jogo” através da persistência, da alegria e da
Fé no amanhã. É a valorização da vida, da própria existência, do momento atual
e de cada momento.
O seu
“gingado”, a sua musicalidade, a sua dança e a sua “malandragem” não são
simples repetição das características “dos malandros do mundo”, vamos dizer
assim. Esses Espíritos não estão entre nós para fazer apologia do que foram,
possivelmente, em alguma encarnação, mas para nos ensinar o que é possível
extrair das lições da vida.
A
grande “malandragem” que eles nos ensinam é como sermos flexíveis, nos
desapegando e abrindo mão de idéias antigas, para nos renovarmos a cada dia;
encarar a vida com leveza, sem guardar rancores e levar tudo para o campo
pessoal; não perder o humor e estragar um dia por causa de um obstáculo, por
maior que pareça; aprender com os próprios erros, para não repeti-los, pois
quem anda atento na vida não vive caindo em buraco...
No
aspecto social, a Linha dos Malandros simboliza a inclusão de negros, mulatos e
mestiços que viviam marginalizados em nossa sociedade desde o período
pós-abolição. Claro que os Espíritos que tiveram uma encarnação assim, como
excluídos, continuaram evoluindo e não precisam ser “incluídos em nosso meio
social”. Nós é que precisamos refletir sobre as exclusões que já aconteceram e
ainda acontecem por aqui, baseadas em preconceitos, para não repeti-las. E só
alcançaremos isso a partir de uma conduta fraterna e de respeito integral ao
“outro”. Por outro lado, a presença desses Espíritos nos Terreiros de Umbanda,
acolhendo a todos com sua alegria e suas magias, é um braço de atração dos mais
humildes, que se identificam com essa maneira despojada de ser, despertam a
autoconfiança e podem melhor se expressar e progredir. Existiria melhor exemplo
de “aprender com os erros”?
Quanto
à questão social, vale lembrar que a “abolição” da escravatura não pôs fim ao
preconceito racial. Historicamente, continuou existindo em nosso país um
preconceito velado em relação aos homens e mulheres de pele negra, aos mulatos
e aos mestiços.
Não
se pretende, aqui, discutir a validade da Lei Áurea, que libertou os escravos
no Brasil, enquanto ferramenta jurídica. Na época, o advento dessa Lei foi
importante porque seus infratores passaram a ser considerados criminosos, e
isto encerrou um capítulo sombrio do nosso passado. Mas o entendimento de que
todos somos filhos de Deus e iguais perante a Lei e a Justiça Divinas não é
algo que se alcance por meio de leis humanas, por mais bem intencionados que
estejam os seus autores. Isto só se alcançará com a expansão de consciência de
cada ser humano, com o decorrer do tempo e a vivência das lições que a Vida
Maior nos proporciona. A “libertação” de opressores e oprimidos vem da expansão
da consciência: conhecendo sua origem e natureza Divina, o ser humano se
desinteressa pelo desejo de posse a qualquer custo e, aí sim, começa a se
“humanizar”, começa a compreender a razão de existirmos e a agir como quem é Um
com o Todo.
Enfim,
com o decreto da abolição no Brasil, um imenso contingente de homens e mulheres
recém libertos não conseguia uma colocação de trabalho remunerado. Antigos
escravocratas defendiam a idéia de que os negros só renderiam se forçados a trabalhar,
como no tempo da escravidão. Houve uma propaganda intensa no sentido de que
seria muito melhor trazer para cá os colonos europeus, obviamente brancos. Os
europeus vieram e ocuparam a maior parte das colocações de trabalho, sendo
sempre preferidos em relação aos ex-escravos. Destes últimos, a maioria ficava
sem uma ocupação condigna e sem acesso às escolas e a um aprimoramento,
enquanto alguns conseguiam apenas ocupações menores. Em consequência, pouco a
pouco se formaram os primeiros grandes grupos de pessoas colocadas a viver à
margem da sociedade brasileira.
Depois da
abolição dos escravos e no correr dos anos, a idéia de que os negros e seus
descendentes eram preguiçosos e menos capazes de aprender do que os brancos foi
um pensamento disseminado em boa parte do nosso meio social. Fato é que a
mão-de-obra escrava sempre deu conta de enriquecer os que dela se utilizavam;
sinal de que os escravos, mesmo em condições absolutamente adversas, tinham
competência no que faziam...
Mas
por toda a parte, no mundo, então se insinuava uma perigosa teoria: a “da
supremacia racial branca”, que de certa forma contaminou o nosso país.
Existia
no Brasil, à época, um clima de discriminação muito pesado, embora silencioso.
Não havia, propriamente, episódios de violência física contra os negros,
mulatos e mestiços, ao contrário do que ocorria em muitos países. Mas os
costumes sociais sinalizavam no sentido de que era preciso “alisar o cabelo”
para se ter boa aparência; que a música, a dança e o gingado dos negros “não
eram boa coisa” etc. etc. Essa propaganda infeliz pretendia fazer com que os
negros, os mulatos e os mestiços negassem sua identidade, forçando-os a “um
branqueamento”. Afinal, para os opressores de sempre, a grande meta era
continuar a escravizar e a melhor forma de fazer isso era pela via indireta, ou
seja, fazendo com que os excluídos se sentissem inferiores e se colocassem em
posição subalterna perante a sociedade que “os libertara”. Irônico? Não, apenas
triste, muito triste esse capítulo da história do nosso país...
De
alguma forma, os poderosos da época continuaram a vender a idéia de que aquelas
pessoas eram inferiores. Os ideais dos Inconfidentes e dos Abolicionistas, que
algum tempo antes comoveram e convenceram a muitos sobre o absurdo da
escravidão humana, culminando com o advento da Lei Áurea, aqueles ideais agora
ficavam para trás, esquecidos, sepultados sob a voracidade da sede de poder dos
capitalistas extremados. Tudo o que importava era o lucro pelo lucro.
Desqualificando, dessa forma, a mão-de-obra dos recém “libertos”, os detentores
do poder político-econômico tomavam-lhes força de trabalho em troca de quase
nada, porque muitos se sujeitaram a isso para não morrer de fome...
De
qualquer maneira e de modo geral, aquelas pessoas e seus descendentes não eram
bem vistos. E, com o tempo, vão surgindo as rodas da marginalidade. Não,
necessariamente, a marginalidade do crime. Mas uma condição de vida à margem do
quadro social. A música e a dança apreciadas por aqueles que a sociedade marginalizava
não eram bem vistas, nem as suas atividades de recreação (jogos, carteado,
capoeira etc.); e então surgiram grupos localizados para essas atividades.
Frequentá-los, muitas vezes, era motivo bastante para ser alvo da polícia.
Obviamente que esses lugares acabavam atraindo também pessoas já antes voltadas
para o crime. Esses locais acabaram por tornarem-se perigosos o bastante para
explicar que muitos de seus frequentadores andassem armados, ainda que não
fossem propriamente criminosos. Daí dizer-se que os “malandros” andavam com
faca ou navalha etc.
Quando
se fala em “malandro”, na linguagem cotidiana, a primeira idéia que nos ocorre
é a do boêmio, do jogador inveterado de cartas ou de dados, do amante da noite,
da música e das rodas de danças, que vivia de expedientes, carregava navalha ou
faca e fugia da polícia.
O
“malandro” carioca faz lembrar aquele que vivia na Lapa, que gostava de samba e
passava as noites na gafieira, chegando a ser personagem de peças teatrais, de
músicas e de muitas histórias. Já o “malandro” de Pernambuco vivia nas danças
do côco e do xaxado, passando as noites no forró. O que eles têm em comum? Eram
todos marginalizados pela sociedade, vistos como “gente à toa”. Porém,
sobreviveram a esse clima adverso, vivendo sem acesso a uma boa instrução ou a
bons empregos; nem sempre conseguiram, senão com muita dificuldade, dar alguma
instrução aos filhos. Nem por isso perderam a alegria, o gosto pela música e
pela dança, pelo carteado, pela conversa noite adentro, de alguma forma
conseguindo manter suas raízes religiosas e tradições ancestrais, dando “um
jeitinho” de ser felizes.
Por
trás dos arquétipos da Umbanda, vamos encontrar, no mais das vezes, a Mão da
Espiritualidade Superior a corrigir grandes equívocos e injustiças sociais e a
nos fazer refletir, enquanto nos auxilia nos problemas do cotidiano. E hoje
temos, na presença da Linha de Malandros, uma excelente oportunidade de
refletir sobre algumas questões, em especial: primeiro, que nem tudo que parece
ruim de fato o é; e segundo, que de tudo se pode extrair algo de bom e de
positivo. Do que poderia ter sido uma experiência de todo ruim, esses Espíritos
extraíram uma lição de flexibilidade. E aquilo que para uma sociedade hipócrita
parecia ser neles um mal era, muito ao contrário, a prova de valor de um povo
que manteve fidelidade às suas raízes e não se deixou vencer pelo meio hostil.
Os Malandros
vêm até nós, pelas Mãos do Alto, para nos ensinar “a boa malandragem”: fazer
limonada com os limões azedos que recebemos dos outros; escorregar e levantar
rapidinho, sem perder a compostura e a elegância, e já sair dançando e
cantando; aprender jogar “o jogo da vida” e ser um bom parceiro de jogo,
aprendendo a rir das tristezas e de si mesmo; assumir ser o que se é, sem hipocrisias,
e fazer todo o Bem que se possa; não se prender a padrões e valores externos,
mas ficar centrado em si mesmo e na sua Fé, sem nunca desacreditar da Vida
Maior, cujo amparo permeia todos os nossos caminhos diários.
Pensar
que os Malandros podem nos ensinar tudo isso brincando, de um jeito tão
despojado, é o bastante para se quebrar velho ditado que dizia: ”de onde não se
espera é que não sai nada”. Porque as aparências enganam!...
Então,
não vamos viver de aparências e nem pelas aparências. Vamos viver a vida com
Amor, Respeito e Fé. Vamos acreditar em nosso poder interior, que é Deus em
nós. Vamos aprender a nos centrar e a nos conhecer intimamente, despertando
nossas capacidades e valores acumulados ao longo desta e de outras encarnações
e que ainda dormem dentro de nós, mas que podem ser despertados pelo nosso
querer, por nossa vontade de superar as dificuldades, por nossa firme
determinação de curar nossos pensamentos menos felizes e de encontrar respostas
para as nossas necessidades, para enfim chegarmos a um caminho de felicidade,
aqui e agora.
Quando
se está na frente de um Malandro da Umbanda, é bom que a gente reflita sobre
isso.
Essas
Entidades estão entre nós por um recurso da Misericórdia Divina, trabalhando
pela continuidade da própria evolução e também em nosso favor. Então, nada de o
consulente adotar “julgamentos apressados”, no sentido de que se poderia pedir
a eles algum mal, um trabalho de magia negativa ou coisa do gênero. E nós,
médiuns, não podemos cair na bobagem de achar que podemos dar vazão aos nossos
impulsos menos nobres e começar a usar de palavreado chulo, ou desandar a beber
e a fumar etc. etc., sob o pretexto de que foi “o malandro” (aqui, com “m”
minúsculo, porque um Malandro, um Guia de Umbanda, não faz isso nunca!...).
Vamos
recordar que os Malandros são Espíritos a serviço da Luz que vêm nos guiar,
orientar e auxiliar; e que um Guia é sempre alguém mais elevado do que nós.
Precisamos nos conduzir com honra, respeito, devoção e gratidão aos nossos
Guias de Umbanda, para darmos continuidade à nossa evolução. É preciso estar no
Terreiro, com em qualquer Templo, de alma e corpo presentes, por inteiro, pra
valer.
Os
Malandros são simples, amigos, leais e verdadeiros.
Mas
se alguém pensa que pode enganá-los, então é desmascarado sem a menor cerimônia
e na frente de todos, porque os Malandros não toleram a maldade, a injustiça ou
a tentativa de se enganar aos mais fracos.
Nos
Terreiros que adotam vestimentas características, quando incorporados em seus
médiuns, os Malandros se apresentam vestidos com camisas listradas, alguns com
camisas de seda, outros de terno e gravata brancos e chapéu ao estilo Panamá e
às vezes de palha. Usam sapatos brancos, ou então bicolores (branco/preto;
preto/vermelho) e gravata vermelha. Alguns usam cartola; outros, uma bengala
(cajado).
Manipulam
magisticamente fumos como charutos e cigarrilhas; e bebidas que vão desde
aguardente, batidas, batida de côco, conhaque até uísque.
São
cordiais e alegres. Parecem dançar a maior parte do tempo, mas com seus
movimentos estão é recolhendo negatividades e purificando as pessoas e o
ambiente.
Podem
se envolver com qualquer tipo de assunto e têm capacidade espiritual bastante
elevada para resolvê-los. Trabalham para curar, desmanchar magias negativas,
proteger e abrir caminhos. Atuam muito na cura de problemas de cunho espiritual
e emocional, particularmente no campo das chamadas doenças mentais (ansiedade,
fobias, depressão, síndrome do pânico, compulsões, esquizofrenia etc.), pois
seu magnetismo é bastante eficaz sobre os distúrbios originários de
desequilíbrios do Sentido da Fé.
De
modo geral, os Malandros se apresentam com uma fita vermelha no chapéu. Mas os
que atuam na cura usam uma fita branca, símbolo do curador, ligado ao Pai
Oxalá.
Dentro
da Linha existem também as manifestações femininas, das quais Maria Navalha e
Maria do Cais são os exemplos mais conhecidos.
Como
regra geral, os Malandros não são Exus. São Entidades que integram Linhas de
Trabalho distintas. Mas alguns Malandros se manifestam nas sessões de Esquerda,
junto com os Exus.
Uma figura
bastante conhecida dentro desta Linha é Seu Zé Pelintra.
Seu
Zé, como é conhecido popularmente, é uma Entidade peculiar, pois tanto se
manifesta na Direita quanto na Esquerda. Na Direita, ele vem como Malandro
mesmo, ou como Baiano, ou ainda como Preto Velho quimbandeiro (isto é, voltado
para o corte de magias negativas). E pode vir na Esquerda, como Exu. Por que
será? Ora, uma das grandes características dos Malandros não é a flexibilidade?
Pois então... Seja como for, ele é um Guia a serviço da Luz.
Já no
Catimbó, Zé Pelintra é “doutor”, é um curador, é um Mestre da Jurema bastante
respeitado. Na Jurema, Seu Zé Pelintra não tem a conotação de Exu, a não
ser quando a reunião é de Esquerda, porque os Mestres da Jurema têm essa
capacidade de pode vir tanto na Direita quanto na Esquerda. Na Esquerda, os
Mestres vêm para cortar o mal.
No
Catimbó, Seu Zé usa bengala (que pode ser qualquer cajado), cachimbo e faz uso
ritualístico da cachaça. Dança côco, baião e xaxado e abençoa a todos, que o
abraçam e o chamam de padrinho.
A
personagem principal da “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque de Holanda, ao
que consta, foi baseada nos modos e trejeitos de Seu Zé Pelintra.
E
Itamar Assumpção, em parceria com Wally Salomão, compôs para Seu Zé Pelintra
esta música, que leva o nome da Entidade:
Zé
Pelintra desceu
Zé Pelintra
baixou
É ele que
chega e parte a fechadura
Do portão
cerrado.
Zé Pelintra
desceu
Zé Pelintra
baixou
É ele quem
chamega, quem penetra
Em cada
fresta e rompe o cadeado.
E quando Zé
Pelintra pinta na aldeia
O povo todo
saracoteia
Aparta briga
feia, terno branco alinhado
Cabelo
arapuá de brilhantina besuntado.
Ele, do ovo,
é a porção gema, bebe suco da jurema
Resolve
impossível demanda
Homem
elástico, homem borracha
Desliza quem
nem vaselina
Saravá a sua
banda.
É ele quem
abre uma brecha
Acende uma
tocha no breu
Desparafusa
a rosca
Seu cavalo
sou eu.
(Fonte: O
site: do afro ao brasileiro ponto org.)
Contam-se
muitas estórias sobre quem teria sido Zé Pelintra quando encarnado. Alguns
dizem que viveu em Pernambuco, outros afirmam que viveu no Rio de Janeiro.
Porém,
não podemos nos esquecer de que dentro da Linha dos Malandros, como nas demais
Linhas de Trabalho da Umbanda, estão agrupados espíritos que tiveram
encarnações diferentes entre si. O ponto central é sabermos que esses Espíritos
não estão presos a seus antigos nomes e sim, que foram agrupados a partir de
suas afinidades vibratórias e evolutivas e de suas especialidades (campos de atuação).
Nomes
Simbólicos: Zé Pelintra, Zé Malandro, Zé do Côco, Zé da Luz, Zé de Légua,
Zé Moreno, Zé Pereira, Zé Pretinho, Malandrinho, Camisa Preta, Camisa Listrada,
Sete Navalhas, Malandro do Morro.
Algumas
Entidades Femininas que se manifestam nesta Linha: Maria do Cais, Maria
Navalha.
Dia da
semana: Não há um dia específico, tendo em vista que a Linha tem um campo
de atuação muito vasto e se manifesta tanto na Direita quanto na Esquerda. Os
Malandros que trabalham na cura costumam ser mais associados ao sábado, regido
por Saturno e Urano, planetas relacionados ao Orixá Obaluayê. Já os que
trabalham no corte de demandas têm uma associação mais direta com a
terça-feira, regida por Marte e relacionada aos Orixás Ogum, Yansã e Omolu.
Campo
de atuação: Limpeza energética, purificação e equilíbrio; quebra de
preconceitos; desapego; corte de magias negativas; abertura de caminhos para a
prosperidade em geral (espiritual e material); cura espiritual, emocional,
mental e física.
Ponto
de Força: O Ponto de Força dos Malandros é na subida de morros, nas
esquinas e encruzilhadas, aos pés de coqueiros e até em cemitérios, dependendo
do seu campo específico de atuação.
Cor:
Branco/preto; branco/vermelho; vermelho/preto.
Guias
ou colares: Suas guias ou colares podem ser de vários tipos, tais como:
confeccionadas com coquinhos; de contas de porcelana vermelhas e pretas, ou
vermelhas e brancas, ou ainda pretas e brancas; de sementes (olho de cabra,
olho de boi, obi branco); de pedras; de palha da costa com búzios.
Elementos
de trabalho: Baralho, moedas, dados, palitos, palha da costa, pedras,
pembas, sumos de ervas, barbante, linhas, fitas, búzios, sementes, côco, água
de côco, terra, dendê, azeite de oliva.
Ervas:
Quebra demanda; arruda; guiné; comigo-ninguém-pode; aroeira; palha da costa;
levante; anis estrelado; algodoeiro; tapete de Oxalá; alecrim; jasmim;
manjericão roxo; folha de bambu; folhas de laranja e de limão; folha de café;
folha e semente de cacau; folha de beterraba; rama de cenoura; café em grão e em
pó; urucum; folha de pitanga; folhas de palmeira e de coqueiro; folha de
bananeira; tiririca; barba de velho; raízes; cipós; cabelo e palha de milho;
louro; losna; agrião; coentro; orégano; noz moscada; pára-raio; espada de São
Jorge; espada de Santa Bárbara; lança de São Jorge; mentas (vários tipos de
hortelã); boldos (vários tipos); ervas amargas; salsinha.
Sementes: Olho
de boi, olho de cabra, obi branco (ou noz de cola).
Fumo/defumação:
Charutos, cigarrilhas, fumo de corda, ervas enroladas na palha.
Pedras:
Variam, dependendo da forma de manifestação da Entidade Malandro.
Para os
que vêm como Baianos: Quartzo branco leitoso; Cristal; Jaspe Vermelho;
Granada; Citrino; Pirita; Topázio Imperial. No geral, as pedras brancas,
vermelhas e amarelas- embora eles possam manipular muitas pedras diferentes, de
acordo com a necessidade do trabalho.
Para os que vêm na Esquerda: Ágata Preta, Turmalina preta, Vassoura
da Bruxa, Ônis, Quartzo Fumê, Mica Preta.
Para os
curadores: Pedras brancas (Quartzo Branco transparente e leitoso, Calcita
Ótica, Topázio Branco); Pedras índigo (Lápis-Lazúli, Sodalita) e ou Pedras
violetas (Ametista, Cacochinita, Fluorita Lilás).
FONTE:
Angélica Lisanty, livros: “Os Cristais e os Orixás”, 2088, páginas 83/85;
“Elixir de Cristais”, 2006, páginas 101/113, ambos da Madras Editora.
Flores: Rosas
e cravos vermelhos e brancos; flores vermelhas e amarelas.
Oferendas:
1- Um
côco verde (separar a água); ervas; flores vermelhas e ou brancas; 7 linhas
brancas e 7 pretas; 7 fitas vermelhas e 7 amarelas; frutas; 7 moedas de
qualquer valor; 7 velas bicolores branco/preto. Forrar o chão com as
ervas. Retirar a água do côco e reservar. Abrir o côco, tirando uma tampa, e
colocar dentro dele as moedas. Colocar o côco no meio das ervas e em volta dele
dispor, sempre em círculos: as flores; as frutas; as linhas, alterando as cores
(branco/preto) e as fitas, também alternando as cores (vermelho/amarelo).
Circular tudo com a água do côco. Em torno, firmar as velas e pedir
prosperidade espiritual e material, em todos os sentidos. Quando as velas
queimarem, retirar todo o material, caso a oferenda seja feita na Natureza.
2-
Lascas de uma rapadura; lascas de fumo de rolo; um copo de melado de cana (ou
oito pedaços pequenos de cana); um punhado de fubá; 7 sementes de olho de boi;
7 sementes de olho de cabra; 1 vela bicolor branco/preto; uma folha de
bananeira lavada e cruzada com azeite de oliva. Abrir a folha de bananeira e
sobre ela dispor as lascas de rapadura e as de fumo. Por cima, ir derramando o
melado, fazendo círculos no sentido horário. Se optar por pedaços de cana, eles
devem ser colocados da mesma forma. Circular com as sementes de olho de boi e
depois com as de olho de cabra. Derramar o fubá sobre toda a oferenda, com a
mão direita, em círculos horários. Na frente, firmar a vela e pedir limpeza,
equilíbrio energético e cura (espiritual, mental, emocional e/ou física).
Recolher tudo quando a vela queimar, se fizer a oferenda na Natureza.
Incensos: Quebra
demanda, sete ervas.
Saudação:
Salve os Malandros!
Cozinha
ritualística:
1- Carne
seca com abóbora: Dessalgar a carne seca, cortar em cubos e cozinhar. Guardar a
água do cozimento. Refogar a carne já cozida com um pouquinho de dendê, azeite
de oliva, cebola, alho, tomate e pimentão amarelo picados. Reservar. Na água do
cozimento da carne, colocar para cozinhar pedaços de abóbora cortada em cubos,
com o cuidado de não deixar amolecer demais. Juntar os pedaços de abóbora
cozidos ao refogado da carne, misturar delicadamente e refogar por uns minutos,
em fogo mínimo, com a panela tampada. Temperar com molho de pimenta, orégano e
cheiro-verde (temperos a gosto).
2-
Farofa de carne seca – Ingredientes: 350 g de carne seca; um pouquinho de
dendê; 1 cebola grande picada; 2 dentes de alho amassados; 2 xícaras de farinha
de mandioca torrada; cheiro-verde picadinho; 2 pimentas vermelhas picadinhas
(retirar as sementes); orégano. Preparo: Deixar a carne seca de molho, de
véspera, e ir trocando a água. Cozinhar e desfiar quando ela estiver já fria.
Numa panela média, aquecer o dendê e dourar o alho e a cebola. Juntar a pimenta
e refogar mais um pouquinho. Acrescentar a carne seca, deixando por alguns
minutos, em fogo baixo e com a panela tampada, para que a carne absorva o sabor
dos temperos. Juntar a farinha, mexer e retirar do fogo. Acrescentar os
temperos.
3-
Farofa de farinha de milho amarela com carne seca, mandioca, abóbora e pimentas
.
4-
Doce de abóbora feito com pedacinhos de gengibre e enfeitado com lascas de
rapadura.
5-Cocada
mole; doce de côco; doce de abóbora com côco.
6-
Bolinhos de tapioca: Ralar um côco seco, juntar a água do côco, triturar bem no
liquidificador. Colocar a tapioca de molho nessa mistura, até inchar. Fazer os
bolinhos e grelhar ou assar. Servir com lascas de rapadura.
7-Feijão
preto cozido sem sal e coberto com côco seco fatiado e milho amarelo.
UMA VISÃO
de FORA da RELIGIÃO de UMBANDA
Texto: O
Arquétipo do malandro: Zé Pelintra como imagem do “trickster” nacional- POR
IGOR FERNANDES- FONTE: O site da Rubedo (Estudos Interdisciplinares de
Psicologia Analítica)
Zé
Pelintra: origem e história― Personagem bastante conhecido, seja por
frequentadores das religiões onde atua como entidade, seja por sua notável
malandragem, Seu Zé tem sua imagem reconhecida como um ícone, um representante,
o verdadeiro estereótipo do malandro, ou porque não dizer, da malandragem
brasileira e mais especificamente, carioca. Não raro, encontram-se pessoas que
o conhecem de nome e pela malandragem, mas não sabem que este é uma entidade do
Catimbó e da Umbanda; outras já o viram retratado inúmeras vezes, mas não
sabiam que se tratava de “alguém” e também encontraremos os que o conhecem
apenas como entidade e desconhecem sua origem e história, estes, porém, menos
frequentes. O fato é que a figura de Zé Pelintra, de uma forma ou de outra,
permeia o imaginário popular da cultura brasileira e é retratada de diversas
maneiras. Por exemplo, como nos explica Ligiéro:
Na
década de 1970, Chico Buarque cria sua Ópera do Malandro. Para o cartaz do
espetáculo teatral, o artista Maurício Arraes utiliza a figura de Zé Pelintra
mesclada aos traços faciais de Chico Buarque em um número típico de minstrelsy
norte-americano, tal como protagonizado no teatro de revista e no cinema por Al
Johnson [...] (LIGIÉRO, 2004, p. 142).
No
início da década de 1990, o cineasta Roberto Moura lança “Katharsis: histórias
dos anos 80”, com Grande Othelo no papel de Zé Pelintra, e este seria o último
longa-metragem desse emblemático ator negro, lembra Ligiéro (2004). Até mesmo a
figura de Zé Carioca, personagem de Walt Disney, teria sido inspirado em Seu
Zé. Ligiéro conta a história:
Em
1940, Walt Disney fez uma viagem ao Brasil como parte do programa “política da
boa vizinhança” criado pelo governo norte-americano – para pesquisar um novo personagem
tipicamente brasileiro. Na ocasião, foi levado com sua equipe de desenhistas
para conhecer a Escola de Samba da Portela. Naquela noite, a nata do samba
reuniu-se, como fizera alguns anos antes com a visita de Josephine Baker ao Rio
de janeiro. Lá estavam as figuras mais importantes do mundo do samba – Cartola,
Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres... Conta-se que foi Paulo – falante e
elegante – quem realmente impressionou Walt Disney e o inspirou a criar o
personagem Zé Carioca. Na ocasião, o sambista não estava todo de branco, tinha
apenas o paletó nessa cor, mas foi o suficiente, pois essa peça passou a ser a
marca de Zé Carioca [...] (Ibidem, p. 108).
E mais
adiante:
O Zé
Carioca do Disney, que passou a ser um símbolo do Rio de janeiro e do próprio
Brasil no exterior, fuma charuto e tem um guarda-chuva que ele maneja como uma
bengala. Parece que quem esteve na Macumba da Mãe Adedé foi Walt Disney, e não
Josephine Baker, e que lá viu o Zé Pelintra incorporado, pois a maneira gingada
de andar e o jeito irônico de seu personagem foram realmente captados da alma
do nosso malandro. É difícil acreditar que ele não soubesse também que o
papagaio é um dos animais consagrados a Exu (Ibidem, p.109).
Seu Zé
está sempre representado, seja em figuras desenhadas, seja em estatuetas, de
terno branco de linho ― e veremos que provavelmente para a malandragem não era
à toa, segundo Ligiéro (2004), ― chapéu de palhinha com uma faixa vermelha
contornando-o, gravata vermelha e sapato bicolor. Essa é sua representação na
Umbanda, o típico malandro – figura que possivelmente ganhou esse estereótipo a
partir da figura de Zé Pelintra.
O
terno de linho branco tornou-se o símbolo do malandro por ser vistoso, de
caimento perfeito, largo e próprio para a capoeiragem. Para o malandro, lutar
sem sujá-lo era uma forma de mostrar habilidade e superioridade no jogo de
corpo. Ao contrário dos executivos de sua época, que tentavam imitar os
ingleses, o malandro não usava casimira, tecido pouco apropriado para o clima
úmido dos trópicos. Seu Zé destacava-se pela elegância e competência como negro
[...]. Numa época em que os negros e brancos viviam praticamente isolados,
apesar da existência de uma numerosa população mestiça nas grandes cidades
brasileiras, vamos observar que a figura do malandro torna-se representativa da
dignidade do negro deixando para trás a idéia de um negro “arrasta-pé”,
maltrapilho ou simples trabalhador braçal (Ibidem, p. 101-2).
Mas
afinal, qual a origem de nosso personagem?
Seu Zé
torna-se famoso primeiramente no Nordeste seja como frequentador dos catimbós
ou já como entidade dessa religião. O Catimbó está inserido no quadro das
religiões populares do Norte e Nordeste e traz consigo a relação com a
pajelança indígena e os candomblés de caboclo muito difundidos na Bahia.
Conta-se
que ainda jovem era um caboclo violento que brigava por qualquer coisa mesmo
sem ter razão. Sua fama de “erveiro” vem também do Nordeste. Seria capaz de
receitar chás medicinais para a cura de qualquer mal, benzer e quebrar feitiços
dos seus consulentes.
Já no
Nordeste a figura de Zé Pelintra é identificada também pela sua preocupação com
a elegância. No Catimbó, usa chapéu de palha e um lenço vermelho no pescoço.
Fuma cachimbo, ao invés do charuto ou cigarro, como viria a ser na Umbanda, e
gosta de trabalhar com os pés descalços no chão.
De
acordo com Ligiéro (2004), Seu Zé migra para o Rio de Janeiro, onde se torna,
nas primeiras três décadas do século XX, um famoso malandro na zona boêmia
carioca, a região da Lapa, Estácio, Gamboa e zona portuária.
Nessa
época, período de desenvolvimento urbano e industrial, a vida da população
afrodescendente foi profundamente transformada. Havia um fluxo migratório
intenso de sertanejos em direção à capital nacional em busca de melhores condições
de vida. Nascem as primeiras favelas, empurrando para os morros os migrantes
dos antigos cortiços derrubados para a Reforma Passos.
Nesse
contexto, Seu Zé poderia ter conseguido fama como muitos outros, pela sua
coragem e ousadia, obtendo aceitação pelos que se encontravam em situação como
a sua. Segundo relatos históricos, Seu Zé era grande jogador, amante das
prostitutas e inveterado boêmio.
Quanto
à sua morte, autores discordam sobre como esta teria acontecido. Afirma-se que
ele poderia ter sido assassinado por uma mulher, um antigo desafeto, ou por
outro malandro igualmente perigoso. Porém, o consenso entre todas essas
hipóteses é de que fora atacado pelas costas, uma vez que pela frente, afirmam,
o homem era imbatível.
Acontece
com Zé Pelintra um processo inverso ao que aconteceu com outros famosos
malandros. Muitos destes foram esquecidos ou enterrados como indigentes. Foram
lendários para uma geração. Entretanto, com o passar do tempo acabaram sendo
esquecidos. “Para Zé Pelintra a morte representou um momento de transição e de
continuidade”, afirma Ligiéro, e passa a ser, assim, incorporado à Umbanda e ao
Catimbó como entidade, “baixando” em médiuns em cidades diversas que nem mesmo
teriam sido visitadas pelo malandro em vida, como Porto Alegre ou Nova York,
por exemplo.
Todo esse
relato em última instância não tem comprovação histórica garantida e o
importante para nós nesse momento é o mito contado a respeito dessa figura.
Incorporação
na Umbanda como Exu- Seu Zé é a única entidade da Umbanda que é aceita em dois
rituais diferentes e opostos: a “Linha das Almas” (caboclos e pretos-velhos) e
o ritual do “Povo de Rua” (Exus e Pombas-Giras), definitivamente outro tipo de
freguesia.
Enquanto
em um existe [...] uma ética cristã com propósitos de cura dos males do corpo e
proteção espiritual pela invocação tanto dos guias espirituais afro-ameríndios
quanto das entidades máximas do catolicismo, incluindo o Espírito Santo, Jesus
Cristo, a Virgem Maria e muitos outros santos desse populoso panteão, [...] no
outro [...] a chamada moral cristã é deixada de lado permitindo que se dê vazão
aos instintos primordiais na procura de soluções para os problemas terrenos
oriundos de pequenezas cotidianas (LIGIÉRO, 2004, p. 37-38).
Como
afirma Birman (1985), “povo de rua lembra facilmente a massa anônima que
circula pela cidade, os trabalhadores, as pessoas comuns que ocupam o espaço
público nas suas idas e vindas”. Na expressão “povo de rua”, fica claro o
binômio casa-rua como opostos. O primeiro marca as relações familiares e o
segundo o sem-domínio, dando a sensação de incontrolável, o marginal. E é dessa
maneira que freqüentemente são vistos os Exus principalmente na Umbanda.
“Representam, pois, o avesso da civilização, das regras, da moral e dos bons
costumes”, continua. A partir disso, Birman (1985) nos traz uma visão também
interessante: “a identificação do exu com o domínio da rua gerou um tipo que é
muito popular na umbanda: o exu Zé Pilintra, figura gêmea do malandro carioca”.
No
ritual do Povo de Rua, o clima é sempre de festividade. É marcado pela
dubiedade esse tipo de ritual, pois embora as pessoas que lá estão estejam à
procura de uma consulta séria para resolução de seus problemas, acabam por
participar do clima festivo e alegre que é constituído, entre outras coisas, de
danças e bebidas. Nessa cerimônia, não só os médiuns incorporados dançam com
seus guias, mas também os clientes e/ou fiéis (ou mesmo assistência, como são
chamadas as pessoas que freqüentam uma gira na Umbanda seja para só ver seja
para consultar um espírito) são convidados a dançar e, se for íntimo de alguma
entidade, até beber com esta. E nesse clima são realizadas as consultas, no
meio de muita música e alegria, por mais séria que seja a questão do
consulente. Como bem observou Ligiéro (2004), “Seu Zé, com seu humor
iconoclasta, nos lembra de que na origem da tragédia havia Dionísio, era
preciso brincar com a vida para, assim, combater com eficácia a própria morte”.
Zé
Pelintra e o arquétipo do trickster― Antes de começarmos a discorrer sobre
estas duas imagens, seria prudente dizer que o presente artigo não tem
pretensão em reduzir o malandro Zé Pelintra em um arquétipo do inconsciente
coletivo. Fazê-lo seria destruir ou negar toda a diversidade de visões de mundo
que o ser humano construiu ao longo de sua história. Seria tentar atribuir
valores a essa diversidade em detrimento de uma imaginável e inexistente
suposta classificação de que culturas são as “melhores” e quais se aproximam
mais da “realidade”. No entanto, a realidade de uma cultura certamente não é a
mesma de outra. Inclusive dentro da mesma cultura podemos achar visões de mundo
diferente. Não existe olhar sem tradução, não existe olhar neutro que seja isento
o suficiente de valores para julgar quais elementos culturais prestam ou não
dentro de uma determinada sociedade.
É
interessante também notar como se encontram resistências no Brasil,
principalmente por parte das elites (“intelectuais e pessoas esclarecidas em
geral”), em assumir ou assinar, como prefere Segato, um lugar às tradições e ao
pensamento afro-brasileiro que, de acordo com a pesquisadora, poderiam estar
gerando um pensamento para o país. Muito embora, em algumas ocasiões, essa
mesma elite faça uso dessas tradições.
Como
estrangeira, [...], estive muitas vezes diante da clara evidência do menosprezo
com que intelectuais e pessoas esclarecidas em geral tratam a tradição
religiosa afro-brasileira. [...] O deslumbramento permanente e sempre renovado
de pesquisadores e cronistas estrangeiros com estes cultos contrasta com sua
falta de prestígio, na atualidade, na cena nacional. Esse menosprezo das elites
pode ser um efeito do racismo à brasileira, isto é, um racismo marcado pelo
medo da familiaridade (SEGATO, 1995, p. 15).
Segato
(1995) explica esse racismo à brasileira diferenciando-o do racismo nórdico,
por exemplo, que exclui o negro justamente por percebê-lo como um “outro”,
alguém bruscamente diferente e desconhecido. Aqui, entre nós, o negro é
discriminado na vida pública justamente pela razão oposta: teme-se ser “o
mesmo”, “a ameaça é a possibilidade de desmascaramento da mesmidade”, conclui a
autora. Seria, então, essa a razão pela qual a mitologia dos orixás passa
totalmente desconhecida para a maioria dos brasileiros que, ao invés de
procurar conhecê-la e familiarizar-se com esse sistema de pensamento, prefere
embarcar nas águas “brancas” da mitologia greco-romana, celta ou ainda, viking.
Não que essas mitologias não tenham seu valor ou sejam pobres, e aqui mais uma
vez ressalta-se a inutilidade da atribuição de valores às culturas, muito pelo
contrário, são mitologias também ricas e complexas, mas esses sistemas de
pensamento dizem mais respeito aos povos onde foram propagados do que a nós.
Zeus tinha um significado muito específico na Grécia e provavelmente não nos
chegou com o mesmo significado, pois não vivemos as mesmas questões humanas e
não as concebemos como os gregos as concebem e vivem. Quando esse mesmo deus é
“importado” pelos romanos, apesar da ponte que se faz na mitologia
“greco-romana”, chegou lá com atributos muito específicos também para o povo
romano, que inclusive o chama agora de Júpiter. Quando essa tradição chega ao
Brasil, já chega impregnada de traduções em cima de traduções, valores
sobrepostos a outros e, frequentemente, Zeus e Júpiter se tornam o mesmo deus,
pasteurizado. Não captamos a essência nem de Zeus e nem de Júpiter. Só podemos
saber deles através de livros que muitas vezes não têm uma assinatura confiável.
Por
que então não falamos de Zé Pelintra, Ogum ou Iemanjá, ao invés de nos
reconhecermos em Hermes, Marte ou Afrodite, só pra citar alguns
“reconhecíveis”? Estes sim estão impregnados na cultura brasileira, fazem parte
do nosso dia-a-dia, estão “vivos” e “atuantes” na nossa sociedade. Muito mais
fácil reconhecer Zé Pelintra nos bares e cabarés e casas de jogos do nosso país
do que Hermes na Lapa carioca. Os gregos deviam ter alguma forma de se
comunicar com seus deuses. Os gregos também faziam oferendas aos seus deuses.
Mas se quisermos “falar” com um deus grego, talvez fique difícil pela escassez
de canais de comunicação e, provavelmente, não saberíamos como fazê-lo. Um
grego talvez fosse necessário no mínimo para uma iniciação em sua cultura. No
entanto, “dialogar” com Zé Pelintra, Ogum, Iemanjá ou qualquer outra entidade
do panteão afro-brasileiro, sejam estas os Orixás do Candomblé ou as entidades
da Umbanda como caboclos ou pretos-velhos, já é muito mais acessível e aqui não
se está falando de, necessariamente, ir a um terreiro conversar com uma
entidade dessas incorporada em ummédium, mas sim de reconhecer suas “caras” no
cotidiano da nossa cultura.
Porém,
devemos tomar cuidado para não pasteurizar nossos próprios deuses. Sobre isso
Segato constata:
Não
ignoro que tem havido um certo grau de banalização e vulgarização dos
conhecimentos próprios do mundo religioso afro-brasileiro. Descrições
superficiais e estereotipadas, uma divulgação massiva e jornalística dos
aspectos mais aparentes e folclorizados da religião raramente acompanhados dos
conhecimentos sutis e complexos que lhes servem de suporte; traduções
esquemáticas e redutoras do sistema dos “orixás” para outros sistemas de
arquétipos como, por exemplo, os signos do zodíaco ou o panteão dos deuses
olímpicos. [...] Mas esse barateamento não é exclusivo desse mundo, e se deu
também, por exemplo, com as tradições orientais, assim como as esotéricas
(Ibidem, p. 16-7).
Como
exemplo, podemos citar o yoga que na Índia é um sistema filosófico, um modo de vida,
mas que no Brasil e demais países ocidentalizados virou, de maneira geral,
ginástica.
Portanto,
a proposta desse trabalho está em oferecermos ao Zé Pelintra o posto de
representação do trickster no Brasil. Se por trickster está entendido ser, como
o próprio Jung designou, aquele que subverte a ordem; o embusteiro; o
trapaceiro; a sombra social, então estamos falando de Zé Pelintra. E mais uma
vez aqui não se trata da crença numa ou outra religião, mas sim da figura, da
imagem que este representa, pois como foi visto, existem as pessoas que sabem
ou já ouviram falar em Seu Zé e suas histórias, mas não sabiam que este era uma
entidade das religiões afro-ameríndias, para que não fique de fora o Catimbó,
berço dessa personalidade. Não se trata, tampouco, de fazermos a tradução de
trickster por Zé Pelintra ou ainda que se fale em arquétipo do Zé Pelintra, mas
sim de tê-lo como imagem desse arquétipo, pois este é mais próximo de todos nós
e para brasileiros é muito mais fácil reconhecê-lo, seja para fins didáticos
seja para ter simplesmente a imagem, do que a qualquer outra figura que se
possa querer pôr em seu lugar. Seu Zé tem em sua personalidade todas as
características do trickster. Como nos mostra Ligiéro (2004), Zé Pelintra tem a
característica “de assumir quase simultaneamente o sagrado e o profano, o sério
e o sacana”, características essas que muitas vezes são usadas para
desmoralizá-lo e classificá-lo como vulgar. Mas o que é o trickster senão
também o vulgar?
O malandro
encarnado por Zé Pelintra, explica Ligiéro, “se coloca miticamente como um
quase-herói, um vencedor que triunfa ao burlar a ordem estabelecida [...]” e
implementa a sua própria ordem caótica. E o autor faz então, uma pergunta
chave:
[...]
se comprovadamente, os malandros desapareceram, ou ainda, se tiveram um final
no mínimo trágico, fica a pergunta: Como permanecem de forma insistente no
inconsciente do povo brasileiro manifestando aspectos dessa energia em vários
campos das atividades religiosas, esportivas e artísticas? (LIGIÉRO, 2004, p.
177).
E
respondendo a sua própria pergunta, Ligiéro fala no arquétipo do malandro que
nada mais é do que o nosso conhecido trickster “à brasileira”:
Creio
que a permanência do modelo clássico do malandro, como algo superior das
culturas negras e mestiças brasileiras, seja também decorrente do trabalho
político e filosófico de admiradores e guardiões da cultura afro-brasileira.
[...] Percebemos que artistas, esportistas e religiosos foram capazes de
absorver o arquétipo do malandro e seu arsenal mítico sem assumirem a
personalidade de marginal, abdicando dos seus traços politicamente incorretos,
como o nefasto machismo e o seu aspecto agressivo e arruaceiro. Eles fizeram de
sua arte/religiosidade uma articulação do mundo ancestral africano com a pós-modernidade
(Ibidem, p.177-8).
Ou
seja, complementando, estaríamos, assim, falando de como pode se dar a vivência
desse arquétipo do malandro hoje. Pois, como se considera para qualquer outro
arquétipo, a identificação cristalizada com o mesmo é que se torna perigosa. Em
outras palavras, não precisamos ser essencialmente embusteiros, trapaceiros ou
subvertedores da ordem, por exemplo, a todo o momento, para ter a vivência do
trickster, ou como estamos preferindo enfatizar ao longo desse trabalho, da malandragem.
Em
tempos de descrença nos partidos políticos, nas religiões e revoluções, Zé
Pelintra, “em suas múltiplas versões, tem se mostrado um guia maleável e
exemplar”. Apesar de pouco conhecido das elites – ou ignorado – e combatido
pelas religiões de poder, podemos ver sua “influência” em vários setores da
população. Parece que alguns políticos cristalizaram a identificação com a pior
parte da malandragem se esquecendo que essa, quando trapaceava era em favor de
uma classe que estava (e continua) sendo oprimida por essa mesma elite. Por
outro lado, os desfavorecidos ainda recorrem à malandragem para tentar a
sobrevivência em um país onde a mobilidade social é quase nula e freqüentemente
encontram em Seu Zé e Ogum, o Orixá guerreiro, seus santos de devoção. O fato é
que “essa entidade”, Ligiéro diz,
[...]
energiza as almas convalescentes de gente do povo e da classe média, dos
milhares de desempregados e dos batalhadores da economia informal: camelôs,
carregadores, baianas, flanelinhas, guardas de trânsito, pivetes, vendedores de
balas nos sinais, prostitutas jovens e velhas... (Ibidem, p.185).
E seja
ela entendida como um santo, força ou arquétipo, é imprescindível notar o quão
brasileira ela é, nos falando assim quem somos, de onde viemos e, quem sabe,
abrindo nossos caminhos.
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