A cura pela realidade virtual -
Como a nova medicina avatar está se transformando em eficaz recurso da medicina para tratar males como dor, fobias, anorexia e estresse, entre outros problemas de saúde
Rachel CostaO princípio é expor o paciente, no plano virtual, a situações semelhantes àquelas que, na vida real, de alguma maneira, impedem sua recuperação. Dessa forma, o indivíduo é submetido a uma espécie de treino. Quando se depara, no cotidiano, com o obstáculo, torna-se capaz de saltá-lo.
Para fazer o paciente mergulhar na realidade virtual são usados os óculos ou capacetes de 3D (que garantem a sensação de imersão no cenário) ou grandes telas, nas quais são projetadas as animações. A interação também varia. A pessoa pode tanto ser exposta a uma cena predeterminada quanto ter o comando total da situação.
ESTRESSE
Sistema criado por Christian trata bancários vítimas de assaltos.
À dir., cenário virtual de agência de banco vista pelo paciente
O sucesso do jogo é comprovado em oito centros americanos de tratamento. E há ensaios clínicos com a ferramenta em Israel e na Holanda. Em breve, eles acontecerão no Brasil. A previsão é de que os bonecos de neve cheguem ao País no segundo semestre, em um estudo capitaneado pelo Pronto Socorro para Queimaduras do Instituto Nelson Picolo, de Goiânia. “A ideia é aplicar a terapia em 200 pacientes”, diz Ricardo Daher, coordenador de pesquisas.
Tratar a dor por meio de realidade virtual é algo recente, surgido a partir de experiências com outras enfermidades. Os primeiros distúrbios a ganhar essas terapias foram as fobias. O medo irracional de voar e de aranhas, entre outros, é um distúrbio de ansiedade razoavelmente comum – só a fobia social, o temor de se expor em público, afeta cerca de 13% da população – e contra o qual são usados vários recursos. Muitos são baseados na exposição gradual do indivíduo ao objeto que lhe causa pavor. Com a terapia virtual, essa estratégia ganhou eficácia surpreendente. Nos EUA, pessoas com fobia social estão conseguindo se destravar graças a um programa no qual elas se veem diante de uma plateia que reage como se fosse de verdade: nem todos prestam atenção, há os que se levantam durante a palestra e outros que aparentam inquietude. O treino, com duração de 15 a 20 minutos, ajuda o paciente a manter a calma e falar melhor.
INTERAÇÃO
Paciente com pavor de aranha vê a imagem do animal pelos óculos
e tem a sensação tátil ao passar a mão em uma tarântula de brinquedo
Entre as fobias, uma das que tem merecido muita atenção é o medo de avião. O contador Marlon Beims, 41 anos, venceu o temor após quatro sessões com a tecnologia, aplicada em um consultório de Curitiba. “Fiz uma viagem para o Peru, em um voo com turbulências, e não me senti mal.” No tratamento, ao colocar os óculos ele se deparava com diversas situações de voo: de dia, de noite, com bom tempo, com chuva, durante pousos ou decolagens.
Fobias de animais são outro gênero contemplado pelo auxílio da realidade virtual. Um dos experimentos pioneiros foi feito nos EUA com uma mulher que tinha pavor de aranha. Após 12 sessões semanais, ela conseguiu segurar uma tarântula em suas mãos sem perder o controle. Esse estudo desencadeou outros, também com aracnídeos, e encorajou a criação de alternativas para mais animais, como as baratas.
Os bons resultados também inspiraram a formulação de alternativas contra outros transtornos psiquiátricos. Hoffman e Patterson, da Universidade de Washington, autores do recurso que alivia a dor de pessoas queimadas, produziram versões que começam a ser utilizadas no tratamento de estresse pós-traumático. Como o nome diz, o distúrbio surge após a ocorrência de eventos traumáticos, como sequestros ou participação em guerras. Presa à lembrança da situação, a pessoa tem enorme dificuldade de seguir adiante. Sofre com pesadelos e muitas vezes tem medo até de sair de casa.
DINÂMICO
Alan aprimora os movimentos da mão. Quando ele toca nos cartões da
mesa, cartões correspondentes na tela do computador emitem sons
Na PUC do Rio Grande do Sul, os beneficiados são bancários que foram vítimas de assaltos às agências onde trabalham. Em seis sessões com realidade virtual – de um total de 18 – o paciente é exposto à rotina de trabalho em um banco. Ele interage com clientes e, em determinado momento, vê a agência ser invadida por bandidos armados. “À medida que essa cena se repete ao longo das exposições, o paciente vai aprendendo a controlar sua ansiedade”, diz o psicólogo Christian Kristensen. Por meio do monitoramento da frequência cardíaca e da condutividade da pele – dois indicadores do nível de ansiedade – o terapeuta mede a evolução de seu paciente, que, desse modo, fica sabendo quando, exatamente, começa a perder o controle.
Esse conhecimento ajuda a ambos identificar com precisão os pontos que precisam ser mais trabalhados e, para o doente, aprimorar o autocontrole. Afinal, ele pode ver como a aplicação de uma técnica de respiração em um momento de maior ansiedade, por exemplo, pode baixar sua frequência cardíaca e frear o sentimento. É um feedback que ele tem na hora, em tempo real. Quando estiver diante de um momento semelhante, na vida real, reconhecerá mais facilmente o que está acontecendo e aplicará o antídoto que aprendeu nas sessões de realidade virtual.
Uma experiência feita na Espanha ilustra a eficácia desse mecanismo com perfeição. Em Barcelona, médicos do Hospital de Bellvitge reuniram portadores de transtornos alimentares, como anorexia e bulimia, e viciados em jogos. Esses dois distúrbios têm raiz em uma tremenda dificuldade de controlar a ansiedade. Sem domá-la, a pessoa recusa-se a comer por medo de engordar, caso da anorexia, come e provoca o vômito por causa do mesmo temor, caso da bulimia, ou cede ao impulso do jogo.
AVATAR
Para perder o medo de falar em público, o paciente cria um personagem virtual.
Por meio dele, aos poucos supera o pânico de se expor
EQUILÍBRIO
Juliana não conseguia andar de carro ou de ônibus porque passava mal.
Após dez sessões com o método, já é capaz de passear
de automóvel pelas ruas de São Paulo sem sofrer
ALÍVIO
Terapia usada nos EUA atenua a dor que pacientes queimados sentem na troca de curativos.
Durante o procedimento, eles são levados a um cenário de gelo
Como a nova medicina avatar está se transformando em eficaz recurso da medicina para tratar males como dor, fobias, anorexia e estresse, entre outros problemas de saúde
Rachel Costa
Na Universidade do Sul da Califórnia (EUA), o método tem outro objetivo. Jonathan Gratch, do Departamento de Ciências da Computação, e sua equipe estão testando o SimCoach. Trata-se de um programa com a chamada inteligência artificial: personagens virtuais com feições e reações humanas atuam como ajudantes dos terapeutas. Fazem perguntas e reagem quando o paciente, a sua frente, muda de posição ou se cala. Por meio das respostas, detectam sinais de possíveis problemas em seu interlocutor – como tendências suicidas ou abuso de drogas. Quando isso acontece, a pessoa é aconselhada a buscar ajuda médica. Uma das vantagens da ferramenta é que não se fala diretamente com o terapeuta. “Os indivíduos ficam mais dispostos a revelar situações delicadas ao terapeuta virtual”, disse Gratch à ISTOÉ.
VIAGEM
Após o uso da técnica, Marlon se sentiu fortalecido para entrar em um
avião. Já foi até o Peru, enfrentou turbulência, mas não teve medo
A reabilitação motora também tem se beneficiado dessas tecnologias. Nos EUA, o serviço hospitalar Beth Abraham adotou jogos virtuais na fisioterapia. Os pacientes são posicionados em frente a grandes telas de tevê, nas quais se vêem projetados. Uma câmera capta os seus movimentos, que servem de comando para o game. “O doente se diverte e se sente incentivado a realizar a fisioterapia”, falou à ISTOÉ Randy Palmaira, diretor da instituição.
No Brasil, as potencialidades da terapia virtual despertaram o interesse da engenheira Ana Grasielle Corrêa. Ela desenvolveu o Gen Virtual. No game, cartões de realidade aumentada produzem sons de instrumentos variados quando a pessoa passa o dedo sobre eles. O paciente pode brincar de jogo de memória ou tocar as melodias que aparecem na tela. Os movimentos que realiza durante a brincadeira são semelhantes aos dos exercícios fisioterápicos. “Mas no jogo virtual os pacientes se sentem mais motivados”, diz Ana. Em sua primeira sessão com o game, Alan Cordeiro, 19 anos, aprovou o recurso. O jovem tem distrofia muscular e já perdeu parte de seus movimentos. “É divertido fazer as atividades.”APERTO
No Rio de Janeiro, a equipe de Rafael Freire aplica um programa contra fobia de lugares fechados.
Na tela, o paciente experimenta a sensação de estar dentro de um ônibus
Para o futuro, os especialistas apostam em uma intensa disseminação, na medicina, deste novo recurso. “Há novas descobertas a cada dia”, disse à ISTOÉ Greg Burdea, da Universidade de Rutgers (EUA) e criador do termo reabilitação virtual – hoje usado para tratar de todas as terapias com uso da tecnologia.